João Simões Lopes Neto, quem é?
Neste ano estamos vendo uma rebeldia extremada da Mãe Natureza. Semana passada coloquei aqui sobre o frio de Inverno que assolava o nosso Rio Grande. Esta semana é o calor do Verão que nos deixa afogueados. Nessa reviravolta, tentei inutilmente criar um causo como da semana passada - http://blogdeitaara.blogspot.com.br/2012/06/outono-temperado-no-rs-frio-polar.html - mas não consegui! Então apelei para as recordações e lembrei dos CAUSOS DO ROMUALDO, obra deixada pelo Simões que somente na década de 1950 seria editada. No causo que trago, a narrativa situa-se no inverno e descreve um calor fora de época, assim como esse que estamos vivenciando. Como foi escrito no início do século XX, o palavreado, o estilo literário assemelha-se aos contadores de causo, muito comuns naqueles tempos sem rádio e sem televisão. Jornais havia, meu avô materno, Alferes Felício Hipólito dos Santos, já assinava, no perdido Alto da União entre os municípios de Ijuí e Cruz Alta, o jornal Correio do Povo ainda na sua versão cor de rosa! Mas deixemos de conversa e vamos para o causo:
XI - O COBERTORZINHO
DE MOSTARDAS
No meu tempo de meninote
fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época
dava a nota no comércio
da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de -
vassoura.
Varria o armazém - uma
"venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas
vagabundas que passeavam
sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do
patrão e ia à missa das
sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu
cascudo dado pelo sr. 1º
caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo
no mesmo prato; ao
escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir
numa esteira, atrás das
pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.
Mas a vida ia correndo.
O diabo foi uma mulatinha, que...
Foi assim: perto do
armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas
como eu, porém
bonitinhas como uns feitiços...
De manhã, quando eu ia à
missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos... mas
baixava-os logo, entre
respeitoso e envergonhado.
As meninas riam-se,
cochichavam e beliscavam-se.
À noite, quando ia à
bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.
Aquela obrigada passagem
pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e
forçava-me a trocar o
passo, na atrapalhação do meu acanhamento.
Porém, a mais dos três
diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da
cor do pêssego maduro, e
ladina como um sorro...
A mandado das
sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras,
puxa-puxa, pé-de-moleque
ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só
havia de ser servida por
mim!
- Seu Romualdo, quatro
de broinhas e dois de puxa-puxa!
Se outro caixeiro vinha
atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:
- É o seu Romualdo quem
me serve. A nhãnhã deu "orde"! ...
E este seu criado
Matias... A vida ia correndo.
Ora, uma tarde, tinham
todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de
plantão ao balcão. Nessa
tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali
fazendo horas, até esses
não apareceram.
Estava eu olhando para
uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim
perguntando que estranha
árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando
embarafustou porta
adentro a mulatinha:
- Seu Romualdo, três de
pé-de-moleque!
Fiz os três vinténs de
pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e
dei-lha, dizendo, meio a
tremer de mim mesmo:
- Toma: isto é doce como
tu..
A mulatinha avançou na
rapadura e respondeu espevitada:
- Como tu, vá ele!
"Menas" confiança! Estomagado com a ingratidão, quis retomar a
rapadura e fisguei o
pulso da mulata. Houve uma pequena luta silenciosa e ... justo, ao tempo que
entrava da rua o patrão,
a mulata bradava às armas:
- Seu Romualdo, não me
belisque!
- Largue a cabra,
menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.
E como vinha de mãos a
prumo sobre as minhas orelhas ... quebrei o corpo. Depois,
não sei explicar o que
se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com
manteiga; nele e nela
afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de
defesa.
Os dedos ferozes
tornaram a roçar-me as orelhas ... outra negaça de corpo e quando
alcei-me, plantei a
plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa.
Calafetei-o!
E voei, porta fora,
assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:
- Bem feito! Apanhou!
... Apanhou! Bem feito! ...
Cinco minutos depois
entrava em casa.
- Tratante! bradava
Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos
caixeiros! Patife!
- Mas ele ia arrancar-me
as orelhas... murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com
a boca pegada a cuspo
grosso.
E Romualdo pai:
- Pois fazia muito bem!
Quem dá o pão dá o ensino!
E Romualdo filho:
- Que ele sempre...
tratou-me... como cachorro... gaudério! Ih! Ih! Ih!
E mais não disse, que os
soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a
"velha"
acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.
Fui mandado para
Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.
Foi um rega-bofe a
viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro regabofe
a estadia, que durou
duas semanas, em casa do padrinho.
Mostardas é uma povoação
perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente
boa, do bom tempo. Tece
o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do
diário; tece a lã desde
os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.
Nesse tempo existia aí
uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão
aquecedora como nunca
mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele,
era necessário
tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e
ficava
com as mãos vermelhas,
quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.
Mas eu, como criançola,
pouca atenção dava a estas cousas.
O lanchão amarrou
novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a
santa da madrinha
arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra
pequena, forrada de
couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de
miraguaia salgada, uma
barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com
rendas de bilros, etc.
E para mim,
expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas
especiais. O meu
cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve,
transparente e
felpudinho. Do lado que devia ficar para os pés. tinha duas barras vermelhas e
do
lado da cabeça tinha o
meu -Romualdo - em letras azuis.
Fiquei encantado! E como
já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma
eitibira larga,
descascada a capricho.
Na manhã seguinte, sob
bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.
O lanchão içou velas.
Ainda uns abanados de mãos, de lenços ... e tudo lá ficou,
para sempre, na volta do
arroio!
Mal pus os pés em terra,
meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé... como
caixeiro!
Chorei pelo patrão da
manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha; chorei por
Mostardas, pelo
lanchão...
Entreguei os presentes,
as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que
me confiaram.
Na minha desgraça só o
meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para
mostrá-lo à minha mãe, a
embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção,
mas já foi suando que o
amarrei de novo com uma ourela de pano piloto. Minha mãe abanava-se
de leque, como em
dezembro.
Segui para Bagé. Uma
viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!
Todos sabem disso.
Passemos adiante.
Quando a
"deligência" fez a última parada, perto da igreja de S. Sebastião de
Bagé, o
meu novo patrão esperava
a encomenda.
Era eu.
Era ele um espanhol
baixinho, gordo e gritão.
Como é dos estilos, pus
a canastra ao ombro e marchamos para a casa do negócio.
Fazia frio!... frio!...
Que frio que fazia!... As fumaças do cigarro do espanhol ficavam
paradas no ar,
endurecidas, talvez congeladas... Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo;
emponchados, todos.
Chegamos. Entramos.
Pousei a canastra. Olhei.
E chorei, logo. Aquela.
distância, aquelas caras novas e cousas estranhas
achatavam-me.
O patrão então falou:
- Mira, chico, estarás
estrompado, he?... Vate a dormir. Mañana tempranito te
tomarás un cimarón con
galletas!
E conduziu-me ao meu
quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.
Lá, no Rio Grande,
tínhamos esteiras, aqui temos pe1egos... Ganhei na troca.
Atirei-me sobre o meu
pelego. Mas o frio cortava.
Meio de gatinhas, pés
duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui
abrir a canastra e sacar
o meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia de estar com a cara como
uma batata roxa...
Tocar no cobertor foi
uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre meus
pelegos, uma alegria;
meter-me debaixo dele, um consolo divino... E ferrei num sono de pedra.
Lá pelas tantas
acordei-me meio afogado, lavado em suor.
Acordei-me sob uma
granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros,
todos em trajes menores,
sentados nos peitoris das janelas, que davam para o quintal.
- Que abafamento! que
calor! diziam eles.
- Parece meio-dia de
fevereiro!
- Se tivesse água agora,
era banho certo!
Eu, por mim, não podia
mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do
corpo. Fui para a
janela, como os outros.
Nisto o espanhol abriu a
porta do nosso quarto e - descalço, em ceroulas e de
poncho de pala enfiado -
bradou:
- Eh! muchachos! Habrá
fuego en la calle? Que está caliente como un sol dormiendo!
Mas logo bateram à porta
da frente.
- Hay fuego, muchachos!
Es fuego! A ver!
Saímos todos com o
patrão; abriu-se uma porta e logo entraram uns quantos sujeitos
vestidos muito à
frescata.
- Chê! Bote um capilé!
pediu um, esbaforido.
- Outro! Que calor!
gritou outro tipo.
- Menino, dá cá um
refresco... reclamou um terceiro.
- Donde es el fuego?
inquiria, aflito, o espanhol.
- Que fuego, nem fuego!
Calor da noite é que é.
- Isto é tormenta!
- Olha! Outro capilé!
- Aqui também!
E o calor aumentava.
Casas abriam-se com
rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas" de
vidro.
Crianças vinham para a
rua, em
camisinha. Ouviam-se risadas, conversas,
chamados. Começavam a
mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos de goiabada, rapaduras e
bolacha doce, latas de
sardinha, ovos e toucinho para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas
improvisadas.
Outras casas de negócio
vizinhas também abriam, para servir à sua freguesia. Havia
movimento em toda parte,
como se fosse de dia.
As pessoas que chegavam
de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no
armazém ainda era mais
insuportável que lá.
De repente ouvimos um
estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que
arrebentava, espumando.
Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as
velas de sebo e as
barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.
Todos os que bebiam ao
balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos
estavam mornos. Veio um
negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria comer uma canja,
para passar o tempo...;
o caixeiro que foi ao galinheiro voltou, atarantado, a participar ao patrão
que as aves todas
estavam assoleadas e já morto um peru gordo.
O espanhol, corado,
pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu
para os fundos.
Mira! Que cosa bárbara!
Do lado do arroio vinha
uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo
que tomava banho!
Nós todos no armazém
suávamos como tampa de panela. Um estancieiro, freguês
da casa, pediu um
chimarrão; o primeiro caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se
aquentar água àquela
hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os
avios e a
"chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de entrada foi dizendo:
- Eta, diabo! ... Lá na
cozinha "tá" tudo fervendo! ...
Aquilo estava esquisito,
estava... Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho,
entre Santo Antônio e
São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia
como farinha, no
terreiro e nos telhados.
E o espanhol, bufando,
repetia:
- Que cosa bárbara! que
cosa bárbara!
Eu, bem se imagina,
estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa
empapada, com receio de
alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta ... e esgueirei-me para
o quarto.
Quase não pude entrar,
sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até a
minha canastra: era
insuportável, aí perto.
Então, só então, como um
raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!
Era ele, só ele, o
calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele
estrupício na cidade.
Fiquei aterrorizado..,
se o espanhol descobrisse!
Muito caladinho,
apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra,
que fechei com o cadeado.
E disfarçado, vim para o
balcão, com os companheiros. Daí a pouco começou a
abrandar a torreira' foi
abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram
as barras do dia e todos
se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.
Nunca ninguém soube
disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu
cobertorzinho ao sol.
Foi o meu prejuízo:
combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro... e pegou
fogo!
Quando fui levantar a
minha coberta, era pura cinza.., e nem fumaça tinha havido!
Olhem
que era cobertorzinho quente, aquele!
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